18 janeiro 2006

Tia Sukita - O Karma

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Corcunda. Inchaço e (muita) dor nas costas. Não tive como escapar. Hospital. Lá me receitaram um medicamento indicado para: reumatismo nas suas formas inflamatório-degenerativas agudas e crônicas; crises agudas de gota; estados inflamatórios agudos, pós-traumáticos e pós-cirúrgicos. Exacerbações agudas de artrite reumatóide e osteoartrose e estados agudos de reumatismo nos tecidos extra-articulares. Coadjuvante em processos inflamatórios graves decorrentes de quadros infecciosos.
Ah! Devo fazer compressa de gelo diariamente durante sete dias.
Falando em gelo, coluna do Nando Reis. .
GELO, GELO E MAIS GELO
12/01/2006 - Estado de São Paulo
Gêlo. Gelo e mais gelo. 20 minutos em cada face do tornozelo. De duas em duas horas. Para a reabsorção dos líquidos que vazaram pelo pé torcido, para a diminuição do edema, daquele inchaço, daquele lago roxo que tingiu o redondo da disforme pata. Os primeiros cinco minutos são terríveis. Uma dor pontiaguda perfura o cérebro continuamente, lentamente, de forma lancinante. Uma espécie de paralizia descai sobre o sistema neurológico e, momentaneamente, a cura passa a ser uma idéia abstrata por que se dá através da forma de uma tortura. Quero tirar essa porra imediatamente! Quero matar o imbecil que disse que eu deveria me submeter à isso!
Não há forma ou razão para suportar a dor voluntáriamente impingida que não venha através da quase perda da consciência nos minutos iniciais do congelamento da parte do corpo escolhida. Vou me machucar para sarar do machucado? Pura filosofia, pouca ciência e muita crendice. Parece que o contraste é ainda pior. Mergulhar o pé num balde cheio de gelo por um minuto e depois mergulhá-lo num outro com água quente por mais dois. E assim, sucessivamente, por cinco vezes até concluir o processo na água fria. Contração. Dilatação. De novo contração. Quente e frio.
Dor dessas que só se suporta mordendo um travesseiro para abafar o uivo do grito. No pain, no gain. Para subir ao céu é preciso atravessar a estrada espinhosa. É da nossa cultura católica a idéia de que a culpa tem que compensar o prazer. Quem mandou ultrapassar os limites do corpo, desobedecer os sinais da sua natureza? Há de se pagar com sofrimento. Gelo. Gelo e mais gelo.E isso tudo por que não foi nada. Não houve fratura, nem muito menos machuquei a mão ou o braço. Aí sim seria uma tragédia. Foi apenas uma ruptura de ligamentos do tornozelo causada por uma torção num pé que pisou em falso num buraco durante uma partida de futebol. Não sou atleta, não jogo futebol profissionalmente.
Preciso dos pés apenas para me movimentar, me locomover e deslocar. Para trabalhar preciso mesmo é das mãos. E da cabeça, que agora está fatiada. Desbalanceada. Como somos simétricos! Uma lateral afetada e tudo se desequilibra. A bengala canadense não substitui bem a perna contundida. Sobrecarrega as costas, musculaturas que habitualmente não são exigidas passam a trabalhar inesperadamente. Ficamos todos tortos, num efeito domino que vai se agravando. Quanto antes entendermos que a harmonia é uma glória, mais rapidamente procuraremos recuperá-la. E tome gelo. Gelo e mais gelo.
Imobilizado com minha ridícula botinha e de meia, penso nos dias felizes quando ficava em pé naturalmente, com facilidade. Comparando com esses dias, quando paro pareço um flamingo urbano, tenho vergonha de não ter dado o devido valor para a minha anterior e natural condição saudável.
Sempre achamos que tudo é eterno. A juventude é eterna. A felicidade é eterna. A saúde é eterna. É muito típico que as pessoas só passem a dar valor aos médicos e aos policiais depois de acidentadas. Você nunca imaginou ser assaltado, tem raiva da cara feia dos policiais, mas na hora que um bandido encosta o berro na tua cabeca você só quer ouvir a sirene de uma viatura irrompendo o asfalto. E dos médicos, que você foge constantemente evitando aquele dissabor da aferição rigorosa, quando eles surgem do nada para acudi-lo no meio do desespero, você os transforma em anjos sem asas.
Somos pobres mortais. Vulneráveis, patéticos e descabidos. Um simples dente careado é capaz de nos tirar a serenidade. Um analgésico, um anti-inflamatório: poderiam ser trocados até pela libido. A dor é uma prova que habilita os de espírito nobre. Sofro com a menor delas. É claro que há os heróis, os homens-de-ferro, os homens benditos. Certamente não sou um deles. Sofro com uma afta, pois ela pode ser o prenúncio de um câncer ou uma moléstia rara. Jogo futebol nos feriados, joguei bola e joguei fora as férias. E agora espero que os ligamentos cicatrizem. Como? Gelo. Gelo e mais gelo.